A galerista paulista Edna Matosinho de Pontes, reuniu um banco de dados sobre a arte brasileira de transformar tábuas de madeira em
histórias, mais conhecida na contemporaneidade como 'Literatura de Cordel' ou
apenas 'Cordel' na exposição "XILOGRAVURA POPULAR, xilógrafos
e poetas de cordel" que entre 2018 e 2019, ocupou um dos mais expressivos ambientes expositivos no Brasil, o Museu Nacional do Conjunto Cultural da República, em Brasília - DF.
O catalogo da exposição, é um livro de porte avantajado, que traz capa dura, dimensionado em 28 por 28 centímetros, publicado pela Galeria Pontes em 2019. Em suas 300 páginas, estão as fotografias das impressões de xilogravuras de grandes mestres do nordeste brasileiro, dessa arcaica técnica reprodução de imagens invertidas, e ainda as ‘iluminogravuras’ de
Ariano Suassuna (1927-2014). Na parte textual uma breve história das publicações impressas que deram origem à maneira peculiar, que se desenvolveu na região nordeste brasileira, em narrar, relatar, informar, alfabetizar, inventar, cantar, rimar e 'metrificar' como destaca o xilogravador pernambucano J.Borges, em uma entrevista concedida, repleta de referências da cultura popular e folguedos nordestinos, que resultam em um infindável material de pesquisa sobre a arte brasileira e do Cordel.
Focada na xilogravura desenvolvida nos séculos XIX e XX, o catálogo da exposição transformado em livro, celebra as manifestações nordestinas que criam o conjunto de fatores na construção do riquíssimo imaginário da região. A arte dos cantadores, o repente, e a estética do cordel, brotaram das crenças e valores de artistas que nunca ou frequentaram muito pouco, as escolas de ensino primário ou fundamental. Pessoas que dimensionaram o diálogo do cotidiano do interior e da periferia dos grandes centros do Brasil em uma genuína interpretação da arte, de raiz brasileira.
Algumas relíquias da xilogravura criadas por poetas populares vinculados aos folhetos de cordel, aparecem para a compreensão da diversidade continental do país, como as impressões dos clichês de 15 por 10 centímetros e meio, obedientes ao formato dos folhetos, que levavam ao sertão brasileiro o valor das palavras, e muitas vezes substituíam os outros meios tecnológicos modernos de comunicação. Eram os folhetos da Literatura de Cordel, os livros, os jornais e também os cadernos, de muitos brasileiros que se alfabetizaram minimamente através do verso e da métrica do poemas.
As raízes do termo 'Cordel' estão ligadas a utilização ibérica, à sua exibição de venda, presos por corda ou barbante; na Galícia, região da Espanha fronteiriça à Portugal, o folheto de poesia popular era conhecido por 'pliego suelto' e também por 'pliego de cordel' e em terras lusitanas correspondia à 'folha volante'. Já no século XV e sobretudo com registros desde o século XVII, os folhetos foram "editados em pequeno formato, contendo histórias narradas em rimas romanceadas de tradição hispânica, ilustradas, muitas vezes, por xilogravura." A literatura popular de países latino americanos também apresentam semelhanças ao cordel brasileiro, como no México, com o 'corrido' e o 'contrapuento' muito próximos ao desafio ou peleja de cantadores-tocadores, na Argentina, os poemas populares impressos em pequenos formatos são conhecidos como 'hojas' ou 'pliegos sueltos'. As similaridades latinas são confirmadas na influência francesa dos séculos XVII, XVIII e XIX, as publicações conhecidas como 'litterature de colportage' e 'bibliotèque bleue' foram extensamente produzidas e impressas em pequenos formatos e ilustradas com xilogravuras, que traziam a capa azul, e o imaginário camponês, artesanal e comercial do tecido social francês. Essas referências são observadas nos papéis coloridos utilizados na literatura de cordel, e a oralidade inspirada em mundos encantados dos trabalhadores franceses, se assemelha às narrativas mais conhecidas do cordel nordestino. Inegáveis semelhanças fortalecem a ideia de permanência dos meios de produção e da vida no sertão nordestino, durante séculos. Vale lembrar que o livro "Duas viagens ao Brasil 1547-1555" do alemão Hans Staden (1525-1576), onde é descrito o ritual antropofágico dos povos indígenas brasileiros, quando publicado na Europa em 1557, tinha aspectos muito semelhantes ao cordel, tanto na questão da utilização da xilogravura como ilustração das cenas narradas, quanto do nascimento da imprensa de tradição europeia, como alternância sobre a propagação de informações e amplitude comunicativa. E também, do ponto de vista antropofágico, validado pelos artistas e intelectuais brasileiros durante a Semana de Arte Moderna de 1922, como um conceito genuinamente brasileiro de receber a cultura estrangeira.
Seguindo o despertar da intelectualidade modernista em enfatizar a valorização da cultura brasileira na primeira metade do século XX, Ariano Suassuna, quando esteve como docente na Universidade Federal de Pernambuco, já na segunda metade do mesmo século, elevou a xilogravura popular proveniente do cordel, ao prestígio de obra de arte, defendendo as raízes nordestinas e salientando a independência da xilogravura, com formatos aumentados, conservando a poesia e as ferramentas utilizadas na maneira característica das imagens criadas que continham os folhetos. Essa celebração da arte popular por artistas plásticos e o olhar erudito, são somas de vários fatores políticos, institucionais e sociais. Destaco entre tantas relevantes iniciativas, a liderada por Suassuna, que adota influências de um dos mais destacados cordelistas da virada do século XIX para o XX, o paraibano Leandro Gomes de Barros (1865-1918), em sua mais conhecida obra 'O auto da compadecida' (1955) que integra aspectos narrativos dos folhetos, para a dramaturgia referenciada no teatro religioso medieval. Na criação do Movimento Armonial, juntamente com outro pernambucano; Gilvan Samico (1928-2013) objetiva entre as variadas artes, difundir a gravura brasileira e incorporá-las às manifestações da arte e cultura contemporânea. Samico assim como e a paraibana Isa Ardene (1923-2019), também presente na exposição, frequentaram curso e escolas de artes, e viram a difusão e repercussão por meio da imprensa, no meio acadêmico e nos circuitos dos grandes museus e acervos de colecionadores, com um interesse pela arte popular além do folclore e da antropologia.
Esse reconhecimento internacional pela riqueza da xilogravura popular através do cordel é gozada por José Francisco Borges (1935), mais conhecido pela sua assinatura; J. Borges, entrevistado em sua oficina impressora no município de Bezerros- PE, conta seu início como caixeiro viajante vendedor de folhetos pelas feiras nordestinas, e seu primeiro folheto autoral de cordel, com a xilogravura de Mestre Dila (1937-2019) um dos mais importantes xilógrafos da Literatura de Cordel, e, sua primeira gravura feita em uma colher de jenipapo. Borges, explora em sua narrativa, a infância de estrutura precária para salientar seu lado matuto e cheio de orgulho por expressões regionais.
Mestre Dila
Uma das preciosidades da entrevista (que pode ser conferida na íntegra, no canal da Galeria Pontes na plataforma online YouTube), são os relatos da tradição do folguedo 'Cavalo-Marinho' e o mito do 'Lobisomem' no imaginário popular do sertanejo nordestino. Mas a percepção importante nas palavras de Borges, para o universo da gravura e para a história do Brasil, é que a precariedade estrutural das condições no sertão nordestino, se manteve durante os séculos XIX e XX, muito próximo ao medievalismo dos séculos XVII e XVIII. A técnica simples, impressa com o prelo de rosca ou feita à mão, gravando tacos de madeira, cavando com faca, canivete, pontuando com prego, e adaptações de ferramentas de fabricação própria, como varetas de guarda-chuva como forma de burilar, fez o cordel ser um dos serviços que constituía a profissão do xilógrafo. E essa expressão difere do xilogravador, pois este seria o artista dedicado à gravura, o xilógrafo, também usufruía de certo prestígio social, sendo procurado para confecção de carimbos para as repartições, cartões de apresentação, convites de aniversário e casamentos, exibindo também uma utilidade pública na sociedade sertaneja, revelando que a arte por si só, não continha a mesma importância, por isso talvez o Cordel no século XX, adquire o papel de reinvenção do povo nordestino, que com a chegada dos adventos tecnológicos da imprensa moderna, deixa de ter essa validade comunitária de impressor e criador de imagens exclusivas e de fácil entendimento, mas enfim entende-se artista.
Entrevista com J. Borges
Esse conjunto da obra recente da história brasileira, elevou a consideração da literatura de cordel em Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN em 2018. Sobretudo, a Literatura de Cordel que congrega a Xilogravura Popular, criou um importante fluxo de revelações entre os sertanejos nordestinos brasileiros, aglutinando sob as narrativas, os processos irradiadores da cultura entre os estados, criando uma legítima identidade nordestina brasileira, firmada no século XX, com as ondas migratórias aos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, norte do Paraná, e na construção da capital federal, e tantas outras obras e cidades pela região norte do país, levando em suas malas e caixotes de caixeiros viajantes, muitas histórias nos folhetos de cordel.
Fontes:
Instagram: @galeriapontes
https://www.galeriapontes.com.br/a-xilogravura-popular-xilografos-e-poetas-de-cordel/